A influência de Martinho Lutero
sobre a pregação é digna de consideração. A Reforma aconteceu, afinal de
contas, pela restauração da pregação fiel, com Lutero e os outros reformadores
abrindo o caminho.
Embora seria um exagero dizer que
a pregação tinha sido inteiramente perdida antes da Reforma, é verdade que
haviam poucos pregadores fiéis na igreja, e a própria pregação certamente tinha
caído em tempos difíceis. O elemento da proclamação, o "assim diz o
Senhor" que é o cerne de toda pregação verdadeira, tinha sido quase
perdido. Por essa razão, uma das mais importantes contribuições de Lutero à
igreja foi sua ênfase sobre a pregação.
O próprio Lutero nos dá uma visão
do que a pregação comumente envolvia em seus dias, ridicularizando e
desprezando abertamente o que se passava então por pregação na igreja por parte
de pastores infiéis. Os sermões eram superficiais, freqüentemente incluindo
fábulas ou estórias, bem como uma mistura de filosofia pagã. Além do mais,
esses "sermões" eram geralmente comunicados de uma forma vulgar ou
cômica, para entreter o povo. Cristo era esquecido. As Escrituras eram
negligenciadas.
"Ó, temos tido pregadores
cegos por um longo tempo; eles têm sido totalmente cegos, e líderes de cegos,
como o evangelho diz; deixaram o evangelho e seguiram suas próprias idéias,
preferindo a obra de homens ao invés da obra de Deus."2
Nunca medindo palavras, Lutero
falou duramente dos pregadores infiéis:
Esses são os pregadores
preguiçosos e inúteis que não dizem aos príncipes e senhores seus pecados. Em
alguns casos, nem notam os pecados. Eles deitam e roncam em seu ofício, e não
fazem nada que pertença ao mesmo, exceto que, como porcos, ocupam o lugar onde
bons pregadores deveriam estar.3
Contra essa corrupção da
pregação, Lutero exigia fervorosamente uma pregação bíblica e expositiva.
"Foi Lutero quem redescobriu tanto a forma como a substância dessa
pregação… Para ele pregação era a verdadeira Palavra de Deus mesmo, e, como
tal, ocupava a posição central da Igreja."4 De fato, a ênfase
sobre pregar o evangelho se tornou uma das principais marcas das igrejas da
Reforma e, como Lutero nunca cansou de apontar, deu propósito bem como
autoridade à existência delas.
Pregação com Substância
Martinho Lutero entendia que a
pregação fiel deve ter substância. Essa substância é a verdade do evangelho, a
exposição fiel da Sagrada Escritura.
A. Skevington Wood resume a pregação de Lutero da seguinte forma:
A característica saliente da
pregação de Lutero era seu conteúdo e referência bíblica. Ele estava preso à
Palavra. Sua pregação nunca era meramente tópica. Ele nunca poderia transformar
um texto num pretexto. "Eu me esforço para tratar um versículo, para
agarrá-lo", ele explicou, "e assim instruir o povo de forma que
possam dizer, ‘Era sobre isso o sermão.’" Sua pregação nunca foi um
movimento dos homens para o texto; sempre foi um movimento do texto para os
homens. O assunto nunca determinava o texto; o texto sempre determinava o
assunto. Ele não tinha o hábito de abordar assuntos ou questões, mas doutrinas.
Mas quando o fazia, ele invariavelmente seguia uma determinada passagem da
Escritura, passo a passo. Ele considerava uma das principais qualificações do
pregador ser familiarizado com a Palavra.5
Lutero ensinou claramente a
centralidade da Palavra. Fé é nada mais que aderência à Palavra de Deus. É essa
Palavra que destrói o pecador pela lei, e levanta o crente no evangelho.
Sua alta estima pela Palavra de
Deus explica o porquê Lutero também tentava pregar sistematicamente por toda a
Escritura, pregando séries de sermões tanto do Antigo quanto do Novo
Testamento.
Por causa dessa ênfase bíblica
sobre a primazia da Palavra e a centralidade da pregação, Lutero não tinha
lugar para o falso misticismo que troca a Palavra de Deus pelos sentimentos
internos. "Fora com os cismáticos que menosprezam a Palavra, enquanto
sentam-se nos cantos aguardando a revelação do Espírito, mas à parte da voz da
Palavra!"6
Deve ser observado nessa conexão
que Lutero falava da pregação em termos de "a voz." Ele disse:
"Observem: o princípio de todo conhecimento espiritual é essa voz de
alguém clamando, como Paulo também diz, Romanos 10:14: 'Como crerão… sem um
pregador?'"7
Pregação com Autoridade
Lutero ensinou claramente que a
pregação que é fiel e verdadeira vem como a autoridade da "voz".
Esse pensamento refletia a alta
visão de Lutero do ofício. O ministro é enviado por Deus e entrar no ofício de
Deus. "Dessa forma, S. Paulo é confiante (2Co. 13:3) que está falando não
sua própria palavra, mas a Palavra do Senhor Cristo. Assim nós, também, podemos
dizer que ele a colocou em nossa boca."8
Essa verdade era importante para
Lutero, também, em face de toda a oposição que obscurecia seu caminho. Era uma
verdade que ele proclamava consistentemente.
Em seu tratamento do Salmo 2,
falando do ofício de Cristo como Mestre que declara o decreto de Deus, Lutero
explicou que o Espírito Santo assim nos ensina que Deus faz tudo por meio do
Filho. Pois quando o Filho prega a Lei, o Pai mesmo, que está no Filho ou é um
com o Filho, prega. E quando pregamos sobre esse mesmo decreto, Cristo mesmo
prega, como ele diz: ‘Quem vos ouve a vós, a mim me ouve’ (Lucas 10:16).9
O pregador, portanto, é o
porta-voz de Deus, o instrumento através do qual Cristo e Deus pregam.
Nós, pastores e ouvintes, somos
apenas alunos; há somente uma diferença, que Deus está falando a você por meio
de mim. Esse é o poder glorioso da Palavra divina, através da qual Deus mesmo
lida conosco e fala conosco, e na qual ouvimos o próprio Deus.10
Comentando sobre João 14:10,
Lutero escreve: "Não somos nós que falamos; é o próprio Cristo e Deus. Por
conseguinte, quando você ouve este sermão, está ouvindo Deus mesmo. Por outro
lado, se despreza este sermão, está desprezando não nós, mas o próprio
Deus."11
Pregação e a Obra do Espírito
Porque Cristo fala pela pregação
do evangelho, a pregação é poderosa e eficaz na realização do propósito para o
qual Deus a envia.
Assim, Lutero chama a atenção em
seus escritos para o lugar do Espírito Santo na pregação. Cristo opera essa
palavra poderosa por seu Espírito Santo. É através das palavras de pregadores
que o Espírito Santo opera, convencendo o mundo do pecado e estabelecendo a fé
dos eleitos de Deus por meio do chamado eficaz e irresistível.
O Espírito Santo de Cristo dá à
pregação o seu poder. Cristo atrai os homens por meio da palavra somente,
resgatando o seu povo do poder do pecado e da morte, e dando-lhes liberdade,
justiça e vida,
Essa coisa grande e maravilhosa é
realizada inteiramente por meio do ofício da pregação do Evangelho. Visto
superficialmente, parece algo insignificante, sem qualquer poder, como qualquer
discurso ou palavra de um homem comum. Mas quando tal pregação é ouvida, seu
poder invisível e divino está em ação no coração dos homens por meio do
Espírito Santo. Portanto, S. Paulo chama o Evangelho de "um poder para
salvação de todos que têm fé" (Rm. 1:16).12
Claramente, os pregadores são
apenas instrumentos nas mãos de Deus: "Que faremos? Podemos deplorar a
cegueira e obstinação do povo, mas não podemos trazer uma mudança para
melhor."13 Somente quando Cristo mesmo fala por seu Espírito
Santo é que a pregação é poderosa para mudar e trazer salvação.
"Eu, nem qualquer outra
pessoa pode pregar a Palavra adequadamente; o Espírito Santo somente deve
expressá-la e pregá-la."14 Pois é o Espírito que opera obras
pela palavra. Quando por meio da pregação externa da palavra e o testemunho
interior do Espírito Santo a fé é criada, então o que é prometido no evangelho
se torna eficaz para o crente.
"Conseqüentemente, ela é uma
Palavra de poder e graça quando infunde o Espírito ao mesmo tempo em que
fulmina os ouvidos. Mas se ela não infunde o Espírito, então aquele que ouve
não difere de forma alguma daquele que é surdo."15
Ouvindo a Pregação
Lutero não ignorou o chamado de
todos os que ouvem a pregação, para examinar essa pregação, a fim de ver se a
mesma é fiel às Sagradas Escrituras. "Por conseguinte, essa é a pedra de
toque pela qual toda doutrina deve ser julgada. Uma pessoa deve tomar cuidado e
ver se essa é ou não a mesma doutrina que foi publicada em Sião por meio dos
apóstolos." É tal pregação que é usada por Deus como a voz poderosa e
salvífica de Cristo. "Pois essa somente, como tem sido dito, é a
verdadeira doutrina, que concede aos homens um entendimento correto e adequado,
conforto ao coração e salvação."16
Junto com essas linhas, Lutero
enfrenta honestamente a questão de se Cristo fala ou não através de um
pregador, simplesmente porque o mesmo ocupa o ofício.
Em primeiro lugar, devemos saber
que aqueles que são enviados falam a Palavra de Deus somente se aderem ao seu
ofício e o administram da forma como o receberam. Nesse caso, certamente estão
falando a Palavra de Deus… Um embaixador ou emissário do rei cumpre seu dever
quando permanece pela ordem e instrução do mestre. Se falha nisso, o rei
decapitou-o.17
Quando um ministro, portanto,
prega fielmente a palavra de Deus, Cristo se agrada em falar por meio dele por
seu Espírito Santo; se não, então essas palavras aplicam-se ao pregador: "Acautelai-vos
dos falsos profetas!" Não devemos falar nem ouvir nada, senão a palavra de
Deus.
Por essa razão, o evangelho deve
ser ouvido e pregado. A pregação não tem apenas substância, mas também um
conteúdo bem específico. Lutero insiste:
"A primeira mensagem do pregador
é ensinar penitência, remover ofensas, proclamar a Lei, humilhar e aterrorizar
os pecadores."18
Nosso pecado deve ser exposto pela pregação do
evangelho. Concernente ao livro de Romanos, ele diz, A soma e substância dessa carta
é: rebaixar, erradicar e destruir toda sabedoria e justiça da carne … não
importa quão enérgica e sinceramente elas possam ser praticadas, devemos
implantar, estabelecer e engrandecer a realidade do pecado… Pois Deus não quer
nos salvar por nós mesmos, mas por uma justiça externa que não se origina em
nós, mas que nos vem dos céus."19
A necessidade de pregar a
depravação do homem é encontrada no fato que a graça é dada aos humildes.
Cristo não veio salvar os justos, mas trazer os pecadores ao arrependimento
(Lucas 5:32). Assim, Lutero diz: "Não pode ser humilde aquele que não
reconhece ser condenável, cujo pecado fede até os altos céus … O desejo pela
graça se origina quando o reconhecimento pelo pecado aparece. Uma pessoa doente
procura o médico quando reconhece a seriedade da sua enfermidade."20
E porque o povo de Deus tem uma
luta contínua com sua carne pecaminosa, a pregação deve ser antitética. Ela
deve ser pregação que não somente soa a trombeta de prata da salvação, mas que
soa também a buzina que expõe e reprova o homem velho do pecado e chama ao
arrependimento.
Como Lutero reconheceu e
experimentou, requer-se coragem na pregação para servir como um embaixador de
Cristo. Mas o pregador não pode deter-se em pregar meramente o pecado, pois
então equivaleria a machucar e não ligar, ferir e não curar. "Portanto,
devemos pregar também a palavra de graça e a promessa de perdão, pela qual a fé
é ensinada e levantada."21
O foco de toda pregação deve ser
Cristo. O único conteúdo de sua mensagem é sobre ele. "Essa é a essência
de sua pregação: Eis o seu Deus! ‘Promova Deus somente, sua misericórdia
e graça. Pregue somente a mim.'"22
Portanto, não menos que Calvino, Soli
Deo Gloria era o moto de Lutero. A soberania de Deus ocupava um lugar
proeminente em toda a pregação de Lutero, pois ele realmente pregava o
evangelho. Chegou até ele também o grito da Reforma: "Deixem Deus ser
Deus!" Em suas palavras: "O evangelho proclama nada mais que a
salvação pela graça, dada ao homem sem quaisquer obras e méritos, seja quais
forem. O homem natural não pode receber, ouvir e ver o evangelho. Nem podem os
hipócritas, pois o evangelho joga fora as suas obras, declarando que eles não
são nada, e não agradam a Deus."23
Somente Deus opera sua
maravilhosa obra de graça ao nos salvar. Pois em Cristo somente descansa toda a
nossa salvação. O evangelho é pregado com o propósito de consolar com graça
aqueles que são contritos de coração.
Martinho Lutero também viu a
importância da pregação à luz dos seus frutos positivos. Em oposição aos erros
do legalismo, ele reconheceu que a vida cristã deve ser uma vida de gratidão a
Deus e, portanto, um abraçar consciente do evangelho de uma salvação graciosa.
Vidas gratas seguem-se à pregação fiel.
A abordagem de Lutero para com a
pregação é uma que mais tarde seria delineada no Catecismo de Heidelberg. Esse
é o caminho do conforto, operado pelo Espírito por meio da pregação.
"Assim, não são as pedras, a
construção, e a grandiosa prata e ouro que tornam uma igreja bela e santa; é a
Palavra de Deus e a pregação sã."24 E essa é a pregação na qual
Deus é glorificado.
Tal pregação é a maior bênção de
Deus para a sua igreja. "Portanto, que aqueles que têm a Palavra pura
aprendam a recebê-la e dar graças ao Senhor por ela, e que busquem ao Senhor
enquanto se pode achar."25 Que nós, os filhos da Reforma,
possamos nos humilhar e agradecer a Deus pela pregação fiel. Deus certamente
exigirá que prestemos conta de nossa pregação e do nosso escutar.
Fonte: David Engelsma (ed.), The Sixteenth-Century Reformation of the Church,
pp. 88-95.
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1E-mail para contato: felipe@monergismo.com. Traduzido em outubro/2007.
2Luther, "Sermon, Matt.
22:37-39," in Sermons I, ed. and trans. John W. Doberstein, in Luther’s
Works, ed. Helmut T. Lehmann (Philadelphia: Muhlenberg Press, 1959),
51:107.
3Luther, "Psalm
82," in Selected Psalms II, ed. Jaroslav Pelikan, trans. C. M.
Jacobs, in Luther’s Works, ed. Jaroslav Pelikan (St. Louis: Concordia
Publishing House, 1956), 13:49.
4T. H. L. Parker, The
Oracles of God: An Introduction to the Preaching of John Calvin (London:
Lutterworth Press, 1947), 20.
5Wood, Captive to the
Word, 89.
6Luther, "Isaiah
40," in Lectures on Isaiah 40-66, ed. Hilton C. Oswald, trans.
Herbert J. A. Bouman, in Luther’s Works, ed. Jaroslav Pelikan (St.
Louis: Concordia Publishing House, 1972), 17:8.
7Ibid.
8Luther, "Psalm
26," in Selected Psalms I, ed. Jaroslav Pelikan, trans. Lewis W.
Spitz Jr., in Luther’s Works, ed. Jaroslav Pelikan (St. Louis: Concordia
Publishing House, 1955), 12:186.
9Luther, "Psalm
2," in Selected Psalms I, in Luther’s Works, 12:43.
10Luther, "Sermon on
John 6:37," in Sermons on the Gospel of St. John 6-8, ed. Jaroslav
Pelikan, trans. Martin H. Bertram, in Luther’s Works, ed. Jaroslav
Pelikan (St. Louis: Concordia Publishing House, 1959), 23:98.
11Luther, "Sermon on
John 14:10," in Sermons on the Gospel of St. John 14-16, ed.
Jaroslav Pelikan, trans. Martin H. Bertram, in Luther’s Works, ed.
Jaroslav Pelikan (St. Louis: Concordia Publishing House, 1959), 24:66.
12Luther, "Psalm
110," in Selected Psalms II, in Luther’s Works, 13:291.
13Luther, "Lecture on
Genesis 6:3," in Lectures on Genesis 6-14, ed. Jaroslav Pelikan,
trans. George V. Schick, in Luther’s Works, ed. Jaroslav Pelikan (St.
Louis: Concordia Publishing House, 1960), 2:17.
14Luther, "Sermon, Matt.
22:37-39," in Sermons I, in Luther’s Works, 51:111.
15Luther, "Lecture on
Galatians 3:4," in Lectures on Galatians, ed. and trans. Jaroslav
Pelikan, in Luther’s Works, ed. Jaroslav Pelikan (St. Louis: Concordia
Publishing House, 1964), 27:249.
16Luther, "Psalm
110," in Selected Psalms II, in Luther’s Works, 13:271, 272.
17Luther, "Forty-seventh
Sermon on the Gospel of St. John," in Sermons on the Gospel of St. John
1-4, ed. Jaroslav Pelikan, trans. Martin H. Bertram, in Luther’s Works,
ed. Jaroslav Pelikan (St. Louis: Concordia Publishing House, 1957), 22:483.
18Luther, "Isaiah
57," in Lectures on Isaiah 40-66, in Luther’s Works, 17:277.
19Luther, "Lectures
on Romans," trans. of Römerbriefvorlesung, in Luther’s Works,
Weimar ed. (Philadelphia: Muhlenberg Press,
1959), 56:3, 4. Uma tradução diferente pode ser encontrada na edição americana
de Luther’s Works, 25:135, 136.
20Luther, "Heidelberg
Disputation, 1518", in Career of the Reformer I, ed. and trans.
Harold J. Grimm, in Luther’s Works, ed. Helmut T. Lehmann (Philadelphia:
Muhlenberg Press, 1957), 31:51.
21Luther, "The Freedom
of a Christian, 1520," in Career of the Reformer I, in Luther’s
Works, 31:364.
22Luther, "Isaiah
40," in Lectures on Isaiah 40-66, in Luther’s Works, 17:14.
23Luther, "Sermon, Matt.
22:37-39," in Sermons I, in Luther’s Works, 51:112.
24Luther, "Lecture on
Genesis 13," in Lectures on Genesis 6-14, in Luther’s Works,
2:334.
25Luther, "Lecture on
Genesis 6:3," in Lectures on Genesis 6-14, in Luther’s Works,
2:18.