A Reforma de Genebra


Catedral de San Pierre, onde está o púlpito de Calvino
O papel de João Calvino na reforma de Genebra foi divinamente ordenado. O próprio Calvino não o procurou. Na sua provavelmente maior anotação auto-biográfica, encontrada no prefácio do seu Comentário sobre o Livro de Salmos, ele apontou que ele não tinha intenção de permanecer em Genebra mais do que uma simples noite, e muito menos de se tornar uma figura de liderança ali.

O plano de Calvino era ir para Estrasburgo. Seu coração estava posto numa vida isolada de estudos privados. Ele acabou passando por Genebra, porque, na providência maravilhosa de Deus, o caminho direto de Paris para Estrasburgo estava bloqueando, fazendo-se necessário para Calvino tomar uma rota diferente, muito mais longa e tortuosa para o sul. Assim, ele chegou em Genebra sem aviso prévio. Mas, embora com somente 27 anos de idade, Calvino era um erudito e professor bem conhecido neste tempo, e alguns que o reconheceram1 fizeram conhecido a Farel que o autor da Institutio estava na cidade.

Assim, o Reformador e pastor Guillaume (William) Farel se tornou o instrumento de Deus para colocar Calvino num caminho diferente. Calvino escreveu que Farel que ardia com um inusitado zelo pelo avanço do evangelho, imediatamente pôs em ação toda a sua energia a fim de deter-me. E, ao descobrir que meu coração estava completamente devotado aos meus próprios estudos pessoais, para os quais desejava conservar-me livre de quaisquer outras ocupações, e percebendo ele que não lucraria nada com seus rogos, então lançou sobre mim sua imprecação, dizendo que Deus haveria de amaldiçoar meu isolamento e a tranqüilidade dos estudos que eu tanto buscava, caso me esquivasse e recusasse dar minha assistência, quando a necessidade era em extremo premente.

Sob o impacto de tal imprecação, eu me sentir tão abalado de terror, que desisti da viagem que havia começado.2

Uma reforma política já tinha acontecido em Genebra, na qual o bispo de Sabóia tinha sido removido e substituído pelo governo dos magistrados. Seguindo esta reforma política, a reforma espiritual de Genebra começou a florescer, especialmente sob a liderança de Farel e um colega no ministério, Pierre Viret. O concílio da cidade suspendeu a Missa em 1535, e subseqüentemente decretou diversas leis proibindo a prática da religião Católica Romana e requerendo que os sacerdotes se convertessem e anunciassem que a doutrina evangélica agora pregada em Genebra era deveras a santa doutrina da verdade. Estas ordenanças foram seguidas na primavera de 1536 pela exortação de que todos os cidadãos deveriam atender aos sermões, para ouvir o verdadeiro evangelho. Em outras palavras, os magistrados estavam tentando produzir uma reforma espiritual pela lei. Neste cenário Farel e Viret pregaram fervorosamente.

Mas como logo seria visto, a verdadeira reforma espiritual não pode vir pela imposição de lei. Como poderia ser esperando, a divisão abundou na cidade, e houve muitas facções que de diferentes perspectivas eram fortes oponentes de qualquer reforma espiritual.

A verdadeira reforma é inteiramente espiritual, a obra de Deus pelo Espírito Santo nos corações dos homens. E para tal reforma Deus teria João Calvino desempenhando o papel de liderança.

A obra de Calvino em Genebra começou no verão de 1536. Ele começou sua obra ali como um professor, um professor notável, o autor da Christianae religionis insitutio, as Institutas da Religião Cristã, publicada uns poucos meses antes.

A tarefa de reforma em Genebra era assombrosa. Calvino entendeu que tal reforma envolveria reorganizar a igreja de acordo com a Palavra de Deus, defender a autonomia da igreja em relação aos magistrados civis (por si mesma uma tarefa nada fácil), bem como trazer uma mudança para a mentalidade das pessoas com respeito tanto a doutrina como aos seus efeitos sobre a moral e a vida cristã.

Calvino se voltou para o trabalho, reconhecendo somente uma esperança para realizar esta tarefa humanamente impossível. Tal reforma poderia vir somente pelo poder da Palavra de Deus.

Philip Hughes nos conta que não foi muito antes que Calvino foi compelido “pelas circunstâncias da controvérsia na cidade ... a adicionar aos seus compromissos de ensino a responsabilidade da pregação pública.”3 Assim, ele se tornou conhecido como um pregador e pastor, e se esforçou com os seus colegas, especialmente Farel e Viret, para estabelecer a igreja e a cidade sobre o fundamento da verdade bíblica.

Calvino nos diz no prefácio ao seu comentário sobre os Salmos que quatro meses haviam quase passado quando Satanás levantou sua horrível cabeça em Genebra com intensidade. Havia problemas de duas direções. Primeiro, havia uma influência Anabatista na cidade, que estragaria a Reforma com extremismo. Esta influência Anabatista foi logo afastada quando Calvino e seus colegas completa e publicamente refutaram os seus ensinos pela Palavra de Deus. De uma direção diferente vieram outros assaltos sobre Calvino e os reformadores. Havia “um certo apóstata muito perverso, sendo secretamente apoiado pela influência de alguns do magistrados da cidade,”4 incitando oposição para com Calvino e os seus companheiros reformadores. Foi uma oposição que breve teria a visto, na expulsão tanto de Farel como de Calvino de Genebra.

A expulsão dos servos de Deus de Genebra, em 22 de Abril de 1538, nem sequer dois anos após Calvino ter começado seus labores na cidade, veio de uma disputa com respeito ao exercício da disciplina cristã. Calvino viu que o exercício bíblico da disciplina cristã era uma marca crítica da verdadeira igreja. Ele colocaria a disciplina juntamente com as duas marcas geralmente reconhecidas pelas igrejas da Reforma Protestante—pregação fiel e administração apropriada dos sacramentos. Neste tempo o exercício de disciplina caiu primeiramente nos pastores. O concílio da cidade, contudo, insistindo que a disciplina era tarefa sua e sabendo que Calvino era a figura de liderança neste exercício eclesiástico de disciplina, achou presunçoso que um estrangeiro tomasse para si mesmo e para outros pastores o direito de excomungar cidadãos “respeitáveis” de Genebra. Em 4 de Janeiro de 1538, o concílio da cidade decretou que a Ceia do Senhor não deveria ser recusada a ninguém. À medida que disputa entre os pastores e o concílio se agravou, Calvino e Farel se recusaram a celebrar a Ceia do Senhor. O concílio, por sua vez, ordenou que eles parassem de pregar e, quando eles recusaram, expeliu-os da cidade. Foram-lhes dados três dias para partirem. A reforma em Genebra não viria facilmente.

Quem não teria suposto que isto traria um fim para a reforma em Genebra? Mas Theodore Beza, recontando a história, escreve:

"Pelo contrário, o evento mostrou o propósito da Providência Divina empregando os labores de seu servo fiel em outro lugar, para treiná-lo, por várias provas, para grandes realizações. Também, derrotando aquelas pessoas sedutoras, através da própria violência deles, a cidade de Genebra foi purgada de muita poluição. Tão admirável o Senhor aparece em todas as Suas obras, e especialmente no governo de Sua Igreja!"5

Calvino suspirou de alívio em sua expulsão. Ele finalmente estava livre da obra que ele nunca quis de forma alguma, e viu sua oportunidade de se estabelecer numa vida quieta de estudo de “torre de marfim.” Sua intenção, contudo, não era a de Deus. Seu“escape” de Genebra seria somente temporário, enquanto Deus continuava a moldá-lo para a obra contínua de reforma ali.

Do verão de 1538 até o verão de 1541, Calvino passou três anos abençoados em Estrasburgo. Deus lhe deu tempo para o desenvolvimento, e lhe deu preparação adicional para a obra que ainda estava diante dele. E embora alguém pudesse esperar que a sua expulsão de Genebra o tornaria um homem amargo, Deus o poupou do pecado de tal atitude. Porque a causa da verdade e da Reforma era mais importante do que qualquer sofrimento pessoal, Calvino continuou a buscar o bem de Genebra mesmo a distância. Quando o Cardeal Sadoleto tentou astuciosamente ganhar a cidade novamente para a causa de Roma, através de uma carta silenciosa endereçada ao “amado Senado, ao Concílio, e ao povo de Genebra”, Calvino respondeu de Estrasburgo com uma carta de sua própria mão, vindo para a defesa do povo de Genebra e da causa de Cristo através de uma clara apresentação da verdade da Escritura, mostrando o fundamento da Reforma. Calvino também continuou a se corresponder com certos líderes e membros da igreja em Genebra, encorajando-os a uma constância paciente na verdade. Mas em Estrasburgo foi dada a Calvino a oportunidade de desenvolver seu entendimento pastoral bem como sua pregação, e de descobrir que o progresso sempre testa a paciência, e que há tempos quando o progresso é melhor feito pelo procedimento cuidadoso e moderado, e dependente da obra do Espírito através da Palavra.

Em 1541 uma mudança política aconteceu novamente em Genebra, na qual os defensores dos Reformadores ganharam novamente o poder. O resultado foi um pedido urgente para que Farel, Calvino e Viret voltassem para a cidade. Farel não seria liberado da igreja em Neufchatel. A igreja em Berne expressou uma disposição em permitir que Viret fosse por um perído de tempo assitir a igreja em Genebra. Os genoveses imploraram para que Estrasburgo liberasse Calvino. A despeito da relutância da igreja em Estrasburgo, assim como a de Martin Bucer, os genoveses persistiram.

O próprio Calvino não tinha desejo de retornar, e de fato considerou tal retorno com terror. “Nem um dia se passou no qual eu não desejasse dez vezes mais a morte”, ele escreveu, do que retornar para o abismo e redemoinho de Genebra. Mas reconhecendo que a vontade de Deus freqüentemente vai contra as nossas próprias inclinações e interesse próprio, e quando o próprio Bucer se convenceu que Deus queria que Calvino fosse e com fervor apontou Calvino ao exemplo de Jonas, Calvino se submeteu. Em 13 de setembro de 1541 ele retornou, para labutar até a morte.

Calvino, recontando seus labores em Genebra após 1541, escreveu, “Fosse eu narrar os inúmeros conflitos por meio dos quais o Senhor tem me exercitado, desde aquele tempo, e as quantas provações com as quais Ele tem me testado, daria uma longa história”. [6] As provações foram inúmeras, e sem dúvida teriam derrubado Calvino não tivesse ele uma visão tão alta da santidade do chamado de seu ofício, e da autoridade da Palavra de Deus.

Todos os labores de Calvino para com a reforma de Genebra estavam fundamentados nas Escrituras.

Sua primeira meta foi colocar em ordem a instituição da igreja. Calvino demonstrou que não somente as doutrinas da igreja, mas também a forma de governo da igreja, devem vir da Escritura. Ele imediatamente obteve o consentimento do Senado em Genebra para uma forma de política eclesiástica que fosse derivada da Palavra de Deus, e da qual não deveria ser permitido que nem ministros nem pessoas se apartassem. [7] Um presbítero regular com plena autoridade foi estabelecido. Através de muitos conflitos com as autoridades civis, Calvino viu que a igreja em Genebra mantinha sua autonomia e particularmente o importante exercício da disciplina cristã em distinção de quaisquer penalidade civis que possam vir sob a jurisdição do magistrado.

A pregação ocupava o lugar principal na reforma da Igreja em Genebra. Na Catedral de São Pedro, onde Calvino geralmente pregava, os serviços de adoração do Domingo eram realizados ao amanhecer, novamente às 9 da manhã, e mais uma vez às 3 da tarde. As crianças eram trazidas à tarde para instrução. Cultos com pregações menores eram também realizados nas manhãs de Segunda, Quarta e Sexta-feira.

Muita atenção era dada ao ensino, seguindo também a forma de um Catecismo que Calvino preparou. Em adição, sabendo a importância da educação para a causa do evangelho, Calvino conduziu a promoção da educação com o estabelecimento da Academia de Genebra.

Como parte das ordenanças eclesiásticas, o diaconato também foi estabelecido. O próprio Calvino foi instrumental no estabelecimento de um hospital em Genebra.
João Calvino via a Palavra de Deus se aplicando a todo aspecto da vida cristã. Ele estava convencido de que o poder do evangelho no coração dos eleitos afetaria sua vida familiar, sua vida na igreja, o manusear de suas finanças, bem como o seu lugar na sociedade e qualquer função que eles pudessem desempenhar no governo. Mas básico para tudo isto é uma igreja verdadeira e saudável. Foi a isto acima de tudo que Calvino deu a sua atenção.

Embora a reforma de Genebra pudesse ser ela mesma limitada, a influência daquela reforma foi espalhada. A obra da Academia de Genebra fundada por Calvino continuou a espalhar sua influência pela causa da fé Reformada por décadas, mesmo após a morte de seu fundador. Além do mais, os refugiados que fugiram para Genebra voltaram para as suas casas levando a fé Reformada com eles. Deste ponto de vista, a reforma espiritual de Genebra foi apenas um microcosmo daquela obra poderosa de Deus por todo o continente da Europa e pelo mundo afora, visto que o Espírito da verdade continuava a guiar a Sua igreja — e assim Ele ainda o faz hoje, em nossas próprias igrejas.

NOTAS:
1Ironicamente, a pessoa que identificou Calvino e que, portanto, foi indiretamente responsável pelo lugar influente que Calvino recebeu em Genebra, embora não identificado por nome, é dito ter sido um indivíduo que subsequentemente apostatou e retornou aos Papistas.
2John Calvin, Prefácio ao Commentary on the Book of Psalms (Baker Book House, 1979), p. xlii.
3Philip E. Hugh es, ed., introdução ao The Register of the Company of Pastors of Geneva in the Time of Calvin (Grand Rapids, MI, William B. Eerdmans Publishing Co.), p. 5.
4Calvin, Prefácio, p. xliii.
5Theodore Beza, The Life of John Calvin (reprint edition, Milwaukie, OR, Back Home Industries, 1996), p. 30.
6Calvin, Prefácio, p. xliv.
7A Church Order of the Protestant Reformed Churches [A Ordem da Igreja das Igrejas Prostentantes Reformadas] , que é essencialmente a Ordem da Igreja de Dordrecht (1618-1619), traz claro testemunho de ser grandemente influenciada pelas ordenanças eclesiástica de Calvino.
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto / felipe@monergismo.com