Talvez seja a grande questão que a Reforma veio para sanar. A justificação pela fé. Quando dizemos “Sola Fide” estamos dizendo que nada é mais necessário para que se chegue à salvação do que a fé na obra redentora de Cristo. Assim, se excluem mutuamente as boas obras humanas ou mesmo as obras prescritas pela Lei de Moisés. Não somos salvos pela fé, somos salvos por Cristo, através da Fé nele.
A Doutrina da justificação não afirma que nós fomos transformados em justos (num sentido definitivo da palavra), mas que somos transformados de pecadores inveterados em pecadores justificados, isto é, a quem alguma justiça foi atribuída, e esta justiça não poderia ser outra se não a de Cristo. Tristemente, como nos outros casos, este também não era o pensamento da Igreja Católica, ou dos “escolastas”, como dizia Calvino. O catolicismo romano ensinava que o homem tinha uma participação fundamental na sua justificação, sempre apelando para as suas obras. Me revolta ver como a verdade da Bíblia era negligenciada pelo clero medieval; era como se eles fizessem questão de crer exatamente ao contrário do que as Escrituras ensinam. No concílio de Trento, chegou-se a seguinte conclusão:
“Se alguém diz que o pecador é justificado pela fé somente, significando que nada mais é requerido para cooperar a fim de receber a graça da justificação, e que não é de forma alguma necessário que ele seja preparado e disposto pela a ação de sua própria vontade, seja anátema.[1]”
Ficou claro que para eles a fé não era suficiente, ela precisava está aliada a justiça (as boas obras que tornam a pessoa considerada justa) já existentes no pecador, e elas iriam “cooperar” para que este pudesse receber a justificação. Paulo não concorda com esse ponto de vista quando escreve aos romanos:
“Ora, ao que trabalha não se lhe conta a recompensa como dádiva, mas sim como dívida; porém ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é contada como justiça; assim também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus atribui a justiça independentemente de obras, dizendo: Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputará o pecado” (Romanos 4.4-8).
Se obras fossem necessárias, Deus estaria como que obrigado a alguma coisa. Paulo compara essa situação a um empregador e seu empregado, o que o empregado faz deve ser reconhecido como dívida para o empregador, o salário não é um presente, é algo merecido e um direito, ou ele paga ou vai se haver na justiça. Nós, porém, cremos naquele que justifica o ímpio. E nossa fé nos é levado em conta.
O mesmo apóstolo, quando escrevia a Igreja de Éfeso, disse também:
“Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não de obras para que ninguém se glorie” (Efésios 2.8).
Veja que a fé é apenas o “meio” pelo qual a salvação se concretiza, e mesmo ela não foi produzida por nós mesmos e nem prevista em nós. Quando ele diz, e isto não vem de vós, é dom de Deus, está se referindo a fé, a fé é um dom de Deus. E logo em seguida Paulo exclui qualquer participação de obras, para que ninguém possa se vangloriar de ter feito por onde merecer o dom salvífico de Deus. Isto inclui as obras da Lei e qualquer tentativa humana de comprar o favor divino.
Em seu livro “Institutas da Religião Cristã”, Calvino abordou esse tema com maestria também. Ele disse assim:
“A Escritura, porém, quando fala da justiça proveniente da fé, nos conduz a algo muito diferente, isto é, que voltados da contemplação de nossas obras olhemos somente para a misericórdia de Deus e a perfeição de Cristo. Com efeito, a Escritura ensina esta ordem da justificação: primeiramente, que Deus se digna abraçar o homem pecador por sua mera e graciosa bondade, não considerando nele nada porque seja movido à misericórdia, exceto sua miséria, a quem, na verdade, vê inteiramente desnudo e vazio de boas obras, buscando ele em si mesmo a causa pela qual lhe deva ser benévolo; então, ele se deixa tocar pelo senso de sua bondade para com o próprio pecador, para que, não confiando nas próprias obras, lance à sua misericórdia toda a soma de sua salvação. Este é o sentimento de fé através do qual o pecador vem à posse de sua salvação, enquanto do ensino do evangelho se reconhece reconciliado com Deus, ou, seja, interpondo-se a justiça de Cristo e alcançada a remissão dos pecados, seja ele justificado; e ainda que seja regenerado pelo Espírito de Deus, não obstante não põe sua confiança nas obras que faz, senão que está plenamente seguro de que sua perpétua justiça consiste unicamente na justiça de Cristo”[2].
Não podemos conciliar a nossa justificação em Cristo a qualquer outra coisa se não a fé, pois corremos o risco de dizer que é exigido de nós méritos, e se méritos forem antes exigidos de nós, onde ficam os de Cristo? A justiça de Cristo é atribuída a nós, e não nós que estabelecemos a nossa própria como premissa para podermos receber a justificação. Não são as nossas obras que nos habilitam a receber o perdão de Deus, é a nossa fé no sacrifício de seu filho,e esta fé é enxertada em nós pelo próprio Deus, para que assim possamos por fim ter paz com ele.
“Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo” (Romanos 5.1).