Algumas Observações sobre a Predestinação - I


 A predestinação é uma das principais doutrinas reformadas. Diria até que é o núcleo tormentoso  e a questão que mais causa polêmica e agitação entre os que se esmeram em estudar as sagradas letras. Não é de agora que esse ensino é seguido de debates e questionamentos. Desde que Agostinho (354 – 430 d. C.) começou a defendê-lo, idéias contrárias foram se manifestando através de opositores. Pelágio, um monge britânico, surgiu por volta de 400 d. C. atacou o posicionamento agostinhano afirmando uma espécie de “monergismo humano”. Mais tarde isso serviu de base para Arminiun formular seu sistema tão amplamente crido no meio cristão, o arminianismo. É evidente que a verdade só pode estar de um lado da história. Como a predestinação é sempre vista como a vilã nas questões teológicas, fica aqui algumas observações sobre a mesma.

1.DE QUE A PREDESTINAÇÃO ANULA A LIBERDADE DO HOMEM.
O grande conflito está em admitir ou não que o homem tem livre arbítrio. Se ele o possui, logo a predestinação não pode ser verdade, pois assim Deus estaria “violando” um direito ou um atributo fundamental do ser humano. Os defensores do livre arbítrio afirmam que a predestinação anula a liberdade do homem e que não tem sentido a pregação do evangelho uma vez que há pessoas que já estão predestinadas à salvação, ou seja, que já serão salvas de qualquer maneira. Por outro lado dizem que é fundamental que o homem seja “livre” para assim poder decidir por Si mesmo se quer ou não, se aceita ou não a salvação oferecida por Deus.
Nas 18 premissas, Pelágio colocou a sua posição sobre a liberdade do homem e suas consequências. Em certo momento diz o seguinte:
O mal é um ato que nós podemos evitar.”
A grande maioria das pessoas olhando para tal afirmação imediatamente concordará com o que esta sendo dito. Talvez boa parte dos crentes se pergunte se há algo de errado com esse pensamento. Na verdade ele está absolutamente equivocado porque simplesmente exclui Deus e sua ação. Para Pelágio o homem poderia fazer o que é certo desde que ele quisesse sem a necessidade de Deus intervir em nenhum momento. Daí quando hoje vemos pessoas ensinando que precisamos “aceitar” JESUS ou fazendo apelos para que se dê uma chance a Deus, elas estão reafirmando esse ensino. O protestantismo histórico atacou veementemente essa possibilidade enaltecendo a soberania de Deus. Aliás, este é um ponto crucial, quando admitimos a plena liberdade do homem automaticamente excluímos a soberania de Deus. Quando excluímos a soberania de Deus, a usurpamos ao homem.
Foi esse conflito que alguns decidiram “maneirar” na visão pelagiana diminuindo o impacto que essas idéias têm no que tangem a ação de Deus. Os chamados “semi-pelagianos” passaram a afirmar que o homem não está totalmente independente da intervenção de Deus, mas que ele coopera com Deus para a concretização da salvação. Esta é a visão da Igreja Católica Romana, influenciada por Tomaz de Aquino (1225 – 1274). Pelágio pareceu muito radical. Todavia, isso em nada diminui a gravidade da questão. Ainda sim o homem continua detentor de um poder que ele não pode possuir.
A predestinação é absolutamente imprópria no contexto do livre arbítrio. A vontade do homem sendo plenamente livre não necessita da preordenção de Deus para o que quer que seja, pois é o próprio homem que determina o que vai acontecer como consequência das suas ações e escolhas. Vejamos o que podemos usar como definição de livre arbítrio.
Poder da vontade humana pelo qual um homem pode se dedicar às coisas que o conduzem à salvação eterna, ou afastar-se das mesmas". (Erasmo de Roterdã - De libero arbitrio Diatribe sive collatio).
Novamente muitos não devem ver mal algum nas palavras do célebre pensador humanista. O que não devem saber é que Martinho Lutero atacou ferozmente essa colocação acima em seu livro “De Servo Arbitrio”, justamente por entender que ela não pode ter fundamentação bíblica alguma. O conceito de liberdade tão amplamente discutido a séculos é exatamente este: poderá o homem realmente ter condições de escolher o bem ou mal tão naturalmente? Isso esbarra num grande conflito, pois se já somos capazes de escolher o bem, de escolher o certo, de fazer o que agrada a Deus, logo não haveria necessidade da vinda de Cristo e sua morte expiatória, pois todos os que livremente quisessem poderiam abandonar o erro e praticar a piedade logo sentissem desejo no coração de fazê-lo. Assim vejo todo o sofrimento de JESUS sendo um mero desperdício de tempo. Quando, porém, entendemos que ele veio para nos libertar de uma escravidão maligna, onde estávamos completamente subjugados pelo pecado, aí se torna coerente o plano de salvação.
Então, podemos dizer que a predestinação não anula a liberdade do homem, porque este simplesmente não é livre. O homem não possui livre arbítrio, ele se encontra “escravizado” pelo pecado, a menos que admitamos que isso seja falso. Sendo falso que o homem está escravizado pelo pecado que nele habita, logo, o que há de errado nele que o faço necessitar a salvação? Isto não concorda com as palavras de JESUS quando diz:
“...todo o que comete pecado é escravo do pecado” (João 8.34).
Percebemos então que cometer pecado não é um ato que demonstra “liberdade de um indivíduo”; pelo contrário, mostra a sua real condição de escravo. Se cometer pecado não deve ser visto como escravidão, estaremos desconsiderando esta afirmação feita por Cristo. Os arminianos dizem que mesmo pecando ainda somos livres, o conceito de liberdade que eles têm é diferente do de JESUS, para Cristo, pecar é sinônimo de se ser escravo, para eles, entretanto, uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra.
Ainda podemos nos utilizar das palavras do apóstolo Paulo:
”Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3.23).
Em João lemos que quem peca é escravo do pecado, agora Paulo nos diz que todos os seres humanos, independente de nação, raça ou cor, pecaram; se pecaram, logo também, todos são igualmente escravos do pecado. Daí podemos concluir que a doutrina da “Depravação Total”, aprovada nos Cânones de Dort, é verdadeira, pois ela nos diz que:
... todos os homens são concebidos em pecado e nascem como filhos da ira, incapazes de qualquer ação que o salve, inclinados para o mal, mortos em pecados e escravos do pecado. Sem a graça do Espírito Santo regenerador nem desejam nem tampouco podem retornar a Deus, corrigir suas naturezas corrompidas ou ao menos estar dispostos para esta correção” (Cânones de Dort, Cap. III.III).
A verdadeira liberdade não consiste em ser capaz de poder pecar, mas sim de ser capaz de obedecer a Deus e a sua vontade.

2.DE QUE A PREDESTINAÇÃO TORNA DEUS INJUSTO.
Talvez este seja o argumento que mais se usa contra a predestinação, e o propósito dele é lançar dúvidas quanto ao caráter de Deus, mais precisamente a sua justiça. Se pudesse ser provado que a predestinação torna Deus um ser injusto em seu trato com as criaturas, isso inviabilizaria qualquer crença nele, colocando em xeque toda esperança do cristianismo como o conhecemos.
Eu já escrevi em outra oportunidade que o grande problema está em nós querermos aplicar a Deus o nosso conceito de justiça. Aquilo que parece ser justo aos nossos olhos deve, obrigatoriamente, também ser aos olhos de Deus. Aí mora um grande equívoco: o querer trazer Deus para a nossa dimensão finita; querer estar no mesmo nível dele. Isso não é algo seguro de se pensar, nem preciso lembrar que o último que quis ser igual a Deus hoje está em abismo de trevas. Ao longo de toda a Escritura podemos ver várias declarações onde nos fica claro que jamais estaremos em plenas condições de compreendermos o modo de agir de Deus, e de como ele governa suas criaturas.
“Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor, porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos” (Isaías 55.8,9).
Creio que o texto supra é bastante claro no que diz. Este é um daqueles versículos que foram incluídos nas Escrituras justamente para nos mostrar a soberania de Deus, para que nos conformemos diante da nossa incapacidade, limitação e alienação quanto aos arcanos do Eterno. Sei que há pessoas que prefeririam invadir (se possível) a mente de Deus e extrair os “porquês”, as razões de ele permitir e executar certas situações, elas não ficam satisfeitas em saber que os caminhos de Deus são sempre melhores e mais altos que os nossos, que os pensamentos de Deus são inalcançáveis e que não nos compete perscrutá-los. Talvez elas não acreditem tanto assim no que está escrito e queiram confirmar a verdade in loco, o que será uma grande perda de tempo.  Sinto pena desses “pseudos” cristãos que duvidam de Deus.
Dizem alguns: Não posso crer em um Deus que escolhe uns para salvar e deixa os outros para se perderem! Que tipo de Deus é esse? Respondo: Por que não? Seria muito se eu dissesse que Deus é um Deus de contrastes?
“Eu Sou, Eu somente, e mais nenhum deus além de mim; eu MATO e faço VIVER; EU FIRO e EU SARO, e não há quem possa livrar alguém das minhas mãos” (Deuteronômio 32.39).
O que dizer desse texto também:
“O Senhor é que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz subir. O Senhor empobrece e enriquece, abaixa e também exalta.” (1º Samuel 2.6,7).
Alguém ousa dizer que Deus não tem o direito de fazer as coisas descritas nos versos acima? A pergunta correta que deve ser feita é:
“Quem é o homem para que dele te lembres, e o filho do homem, que o estimes?” (Salmo 8.4).
Não devemos questionar o que Deus pode ou não pode fazer, e sim quem somos nós para o questionarmos em seus caminhos. Se aprouve a ele salvar alguns, quem somos nós para dizer que ele está errado? Qual é a nossa moral ou credencial para contendermos com ele? Se agora mesmo Deus quisesse lançar a todos nós no inferno e sem nenhuma chance de defesa, ainda sim ele continuaria sendo um Deus JUSTÍSSIMO, MISERICORDIOSÍSSIMO e BOM. Isto soa mal a você? Será que lá no seu íntimo você não nutre o pensamento de que Deus te deve alguma coisa? Precisamos avaliar essa questão interior. É nisso que muitos estão incorrendo, porém não se dão conta, ou até mesmo ignoram.
Foi exatamente quando tratava desse assunto que Paulo escreveu aos crentes de Roma, antecipando a pergunta que borbulhava nas mentes deles:
“Há injustiça da parte de Deus? De modo nenhum! Pois ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão” (Romanos 9.14,15).
Vemos, então, que para o apóstolo a questão está mais que explicada. Não nos compete indagar ou exigir de Deus uma resposta de acordo com a nossa lógica. Precisamos eliminar a idéia de que todo o universo deve girar em torno de nós. Deus é plenamente soberano no que faz e ponto final.

Ir. Samuel

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