Deus Ama o Pecador?

Certamente a maioria da cristandade dirá que sim. Seria um daqueles princípios reconhecidos como básicos e também diriam a velha frase: “Deus ama o pecador, mas odeia o pecado”. Aqueles que pronunciam certas frases e jargões não buscaram muito respaldo bíblico na hora de inventá-los. Acontece o mesmo quando se diz “eu profetizo sobre sua vida”, “tá amarrado”, “joelho no chão, jejum e oração” e tantas outras. Tudo isso é fruto da ignorância espiritual na qual boa parte do povo evangélico se encontra. 

Quando analisamos algumas coisas que dizemos já tão naturalmente podemos constatar o quanto fugimos das Escrituras e valorizamos nossos próprios conceitos. Aprendi que a Bíblia sempre está com a razão, por mais difícil que seja para eu compreender. Talvez compreender não seja nem mesmo o problema, e sim aceitar, se conformar. Com a propagação cada vez maior das “doutrinas” antropocêntricas na Igreja, o povo que se julga cristão está indo mais e mais para longe das origens da Fé e rechaçam os valores e os ensinamentos que contrariam o bem-estar humano. Isso significa que foi criado um “evangelho” muito atraente, mais fácil de engolir, mas deslizante. O que aconteceu com a pregação que humilhava o homem? Que o fazia tremer perante a soberania de Deus? Foi simplesmente abandonada ou lançada no depósito, como dizia Spurgeon.

Há ainda aqueles que realmente acreditam que estão agindo de maneira sábia, porque fazem corretamente uma ou outra coisa. Mas em suma ainda estão longe do desejável. Não pode haver espaço para duas mensagens diferentes. Não se pode ensinar uma coisa e depois ao mesmo tempo contradizê-la. Só existe dois lados, ou se é cara ou coroa. Também não se pode ficar com metade da verdade, ou fica com ela totalmente ou a rejeita em absoluto. Há muitos ministérios sofistas, ensinando meias verdades, enfocando somente aquilo que lhe interessa e arranjando meios de transformar tudo em lucro.

Dito isto podemos pensar um pouco acerca da frase: Deus ama o pecador, mas odeia o pecado. Já faz alguém tempo que eu parei de sair por ai dizendo “Jesus te ama”! Ora, como posso ter tanta certeza disso? A Bíblia não me fornece suporte para sustentar que Jesus ama toda e qualquer pessoa. Isso talvez fira os olhos de muitos irmãos antropocêntricos que estão lendo no momento!

Eu diria que há uma grande confusão em torno do significado do verbo amar. É necessário discernir em que sentido ele está sendo dito e propósito. Muito do que dizemos está relacionado com o contexto humano, a esfera onde vivemos. Não podemos aplicar aquilo que é humano à essência de Deus. Por vezes as Escrituras nos apresentam facetas de Deus que são difíceis de compreender em sua plenitude, o que não significa que elas contradizem seus atributos de justiça e retidão, mas simplesmente que não estamos habilitados para entendê-las por completo.

O que podemos entender por Amar? Alguns tomam apenas pela mera definição humana de afeição. Realmente no contexto humano amar quer dizer isso. Um homem pode sentir tamanha afeição por uma mulher e casar-se com ela, ao mesmo tempo em que qualquer ser humano normal tenha uma afeição especial por seus genitores, irmãos, amigos. Estou falando de gostar muito de alguém. Isto é a esfera humana, o sentido humano de amar, o significado de amar aplicado no dia a dia do homem.
Mas e quanto a Deus? Como o verbo amar se aplica a ele? Jesus disse certa feita:

“Quem tem os meus mandamentos e lhes obedece, esse é o que me ama. Aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me revelarei a ele” (João 14.21).

Imagino que tenha ficado bastante claro qual é o significado da expressão amar a Deus. Quando estamos nos referindo às coisas espirituais aquilo que é meramente físico e limitado não pode ser colocado como fundamento. A essência do amor a Deus é a obediência. Mas é evidente que aquele que obedece sente também uma “afeição”, mas somente ela não é suficiente para definir o amor pelo criador; a correta definição está na obediência.

“Porque nisto consiste o amor a Deus: em obedecer aos seus mandamentos. E os seus mandamentos não são pesados” (1ª João 5.3).


É a própria Bíblia quem nos fornece esse modo de pensar, logo se alguém não concorda com ela terá de discordar das Escrituras. Vincent Cheung foi muito feliz quando escreveu:

“Somente um cristão verdadeiro pode amar a Deus... (...) ele obedece aos seus mandamentos, e submete-se-lhe no pensar e no agir. Naturalmente, um cristão também gosta muito de Deus, mas isso seria fingimento se também não obedecesse ele aos mandamentos divinos na Bíblia. Assim, o amor por Deus não é definido como inclinação ou admiração, mas como obediência”.

Portanto, devemos retirar da cabeça a idéia de que se eu “gosto” de Deus, logo eu amo a Deus. E substituí-la por: Se eu obedeço a Deus, logo eu amo a Deus.

E quanto ao amor de Deus por nós? Esse é o ponto no qual quero chegar. Se o assunto anterior não foi fácil para ser digerido, o próximo pode causar uma verdadeira indigestão naqueles que não foram ainda vacinados contra o vírus do antropocentrismo.

Há dois modos pelo qual Deus ama. Duas maneira pelas quais a expressão “amar” é atribuída a ele como sendo o desencadeador do processo.

O AMOR SALVÍFICO

Este é o amor restrito de Deus. Como o próprio termo já deixa transparecer, é por esse amor que ele concede salvação. É restrito porque é limitado a um número específico de pessoas. Obviamente aqui entra a predestinação e eleição. Como Deus determinou desde a eternidade algumas pessoas para serem salvas através de Jesus, isso quer dizer que ele lançou seu amor sobre elas. O ato de predestinar é em si um ato de amor, como bem diz o apóstolo Paulo:

“...e em amor nos predestinou para ele...” (Efésios 1.4,5).


Não é difícil de entender isso. O problema é que a maioria das pessoas está acostumada a olhar para Deus como o pai de todos os homens, e que por isso, obviamente, amaria a todos no mais profundo sentido da palavra. Ser o criador não implica necessariamente em amar aquilo que foi criado. Mas não sei você leitor irá continuar a leitura se eu começar a comparar os seres humanos como objetos. De qualquer modo, não há outra opção. O meio mais fácil de podermos compreender esse mistério é comparando a relação de autoridade entre Deus e nós com a de um criador e o objeto que ele mesmo criou. É muito comum, por exemplo, um artíficie ter um zelo maior pela primeira peça que ele conseguiu produzir. Ele pode chegar a guardar aquele objeto como um troféu e por em um local de destaque, nutrir quase uma devoção por ele. Ao mesmo tempo ele pode criar uma outra peça e não dar qualquer importância a ela. Ele foi injusto por fazer isso? Ele era obrigado a gostar das duas peças de igual modo? Claro que não! Afinal quem as criou foi ele, a autoridade é toda dele. É desse modo que podemos entender porque Deus ama os eleitos, mas odeia os réprobos, ama as ovelhas, mas detesta os bodes.

É fundamental que possamos discernir em que sentido Deus ama a certas pessoas. Um amor salvífico e universal como prega o arminianismo é muito contraditório. Que tipo de amor lança no inferno? Não é isso que Deus faz com ímpios? Talvez alguém diga: A culpa é deles, eles é que quiseram ir para o inferno. Deveras a desobediência deles não poderia lhes conceder outro destino, mas será que não foi Deus quem já dantes determinou que eles iriam para o inferno? Ou melhor, não foi o próprio Deus que antes já designou o inferno para os pecadores e ímpios? Que tipo de amor cria tal punição? Se ele realmente amasse, não criaria antecipadamente uma punição tão cruel que já está pronta antes mesmo do pecador pecar. Se ele realmente amasse todos os pecadores ele teria providenciado um meio para impedi-los de continuar pecando. Não teria criado o inferno, mas teria arranjado um meio de conduzir os pecadores de volta a comunhão. Agora alguém deve gritar: Mas foi isso que ele fez enviando Jesus! É mesmo? Então Jesus conduz todos os pecadores de volta a Deus? Evidentemente que não. Apenas alguns. Logo fica claro que ele só ama esses “alguns” que são conduzidos à gloria, doutra sorte o que o impede de conduzir os outros?

Perceba que qualquer argumento contra o que acabo de dizer implica numa restrição a Deus. Poderia dizer mais, limitação no poder de Deus. Como certa vez ouvi um palrador frívolo dizer que o livre arbítrio é como uma cerca que impede a Deus de salvar o homem, a menos que o próprio homem pule a cerca e venha ao encontro de Deus. Alguém que diz uma coisa dessas deveria no mínimo ter a decência de não se considerar cristão. Eu não posso chamar de cristão uma pessoa que vai contra a doutrina de Cristo. Foi exatamente isso que Lutero afirmou quando disse que "...se alguém julga ter recebido a salvação pelo seu livre arbítrio, nunca conheceu a Cristo e nem entendeu direito o evangelho".

O amor salvífico é também o amor eletivo de Deus, pelo qual ele mesmo decide quais serão os objetos de sua graça. Nisso não há nem uma injustiça. Injusto seria ele amar a todos e não equipar a todos com a capacidade de obedecê-lo e servi-lo. A menos que digamos que esta capacidade venha de nós e não dele. Não creio que as pessoas orem dizendo assim: Eu me agradeço por ter produzido em mim mesmo a capacidade de obedecer a Deus. Eu sou grato a mim por ser obediente e fiz isso sozinho! Ora, é absurdo. Pelo menos os crentes sinceros oram: Senhor obrigado por me dares capacidade para te obedecer e servir! Só podemos obedecer a Deus porque ele nos capacita para tanto. Logo, como poderemos aceitar o livre arbítrio? Pior do que isso é dizer que Deus trabalha com uma soma de esforços, que ele age em cooperação com o homem. Estaríamos dizendo que Deus sozinho não é suficiente para nos salvar, mas que ele precisaria da nossa ajuda, ou seja, é saltar da frigideira para o fogo! A única verdade é que Deus sozinho nos salva, no capacitando para obedecê-lo e amá-lo, isso porque nos amou primeiro e nos escolheu antes da fundação do mundo.

AMOR BENEVOLENTE

Podemos chamar assim o amor que Deus dispensa sobre toda a humanidade. Evidentemente que esse amor não propicia salvação. É uma dádiva de misericórdia a qual ele envia sobre toda e qualquer pessoa. Jesus falou sobre isso:

“[ele] faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos” (Mateus 5.45).

Essa faceta do amor de Deus é também designada como Graça Comum, por seu caráter universal e indistinto. O sol, a chuva, o ar, o frio, o calor, todas estas dádivas vêm sobre qualquer pessoa, não importa se ela é cristã ou pagã. Não importa se ela obedece aos mandamentos ou se é rebelde e contumaz. Deus não estabeleceu mandamentos pelos quais devêssemos receber tais bênçãos. É um ato de misericórdia, ninguém merece esses benefícios, mesmo assim todos recebemos das mãos do Eterno. Nesse sentido podemos dizer que ele ama toda humanidade. Mas atenção, não podemos confundir o termo “amar” com o contexto humano. Dessa forma seria uma contradição ele amar a todos, mas ao mesmo tempo lançar alguns no inferno. Como antes já disse, a definição de amor deve seguir o contexto da natureza divina, seja no sentido salvífico ou no sentido de benevolência comum. Isso pode parecer um pouco difícil de assimilar logo no começo, porém é necessário que esse padrão humano seja destruído para podermos compreender com clareza o sentido exato no qual se manifesta o amor divino, e em que direções ele vai.

Talvez se queixem alguns de que se Deus ama a humanidade mesmo que num sentido de mera benevolência, isso o torna no mínimo um ditador, já que ele escolhe aos quais quer conceder o maior dos benefícios que é a salvação e o nega aos demais. Isto é, ele concede todos os benefícios de valor temporal igualmente sobre qualquer ser humano, mas limita o maior de todos os benefícios apenas a alguns, àqueles que ele mesmo selecionou. É precisamente o que ele faz. Entendo que muitos rejeitem essa minha afirmação e a considerem como herética por ferir o centro do pensamento humanista, onde o bem-estar do homem não pode ser vituperado. Ainda podem alegar que estão defendendo a justiça de Deus, mas ela não necessita ser defendida, muito menos por quem não entende nada sobre justiça como nós - finitos e limitados humanos. Devemos abraçar e reverenciar o desígnio de Deus, não importa o quanto ele fira nosso orgulho e prepotência.

AMAR O PRÓXIMO

Finalmente se argumenta que amar ao próximo como a si mesmo mostra que se Deus nos exige tal ordenança é porque ele mesmo o faz. Mas novamente precisamos nos lembrar do contexto no qual a expressão amar é utilizada. O mandamento é na verdade um espelho do caráter perfeito de Deus reproduzido em nós. Isto significa que se ele ama, nós amamos. No contexto divino já mostrei que amar indistintamente é no sentido de benevolência comum (fazer o bem) e não no sentido de comunhão. Ainda que estejamos falando do trato humano, ainda sim prevalece o contexto divino da ação de amar. Assim como o Senhor faz nascer o seu sol sobre maus e bons, também devemos mostrar benevolência sobre os ímpios e incrédulos e não somente aos irmãos. Este é o sentido correto de amar o próximo: o de fazer o bem e não retribuir o mal àqueles que nos causam danos.

“Eu, porém vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mateus 5.44).

“Não torneis a ninguém mal por mal; esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens; se possível, quando depender de vós, tende paz com todos os homens; não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas daí lugar à ira; porque está escrito: A mim pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor. Pelo contrário, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer, se tiver sede, dá-lhe de beber” (Romanos 12. 17-20).


Tem-se em vista uma auto-renúncia onde não pagamos mal com mal. Isso é o oposto do que eles (ímpios) fazem, pois estão sempre dispostos a vingarem-se na primeira oportunidade que tiverem. Nós, porém, que nascemos de uma semente incorruptível, não devemos ter tal atitude.

O ÓDIO OU SANTA INDIGNAÇÃO

Agora chegamos num ponto complicado. Sabendo que amar ao próximo significa fazer-lhe o bem e negar o mal, resta ainda um procedimento que devemos ter em relação aos réprobos.

 As Escrituras nos dizem que Deus abomina todos quantos cometem iniqüidade.

“Os arrogantes não são aceitos na tua presença; odeia todos os que praticam o mal”. (Salmo 5.5).

Uma vez que o próprio Deus odeia os pecadores, nós que fomos por ele mesmo justificados e amados, devemos reproduzir essa conduta em nosso viver. Existe então um “ódio” que temos que manifestar para com os ímpios e réprobos. Novamente precisamos discernir o sentido desse ódio. Dentro do contexto humano usual quando alguém diz que odeia algo geralmente está dizendo que nutre algum tipo de mágoa ou ressentimento. Dizemos que odiamos uma pessoa quando ela nos causa um mal muito grande. Esse ódio leva o ser humano a querer tirar a vida do próximo, fazê-lo sofrer, como se o sofrimento dele nos causasse alívio da dor que ele primeiro nos proporcionou. Não é neste sentido que devemos odiar os ímpios. A santa indignação tem a ver com oposição a tudo aquilo que é moralmente ofensivo a santidade de Deus.

Se nós hoje na condição de salvos aborrecemos o pecado tanto quanto Deus, devemos também aborrecer aqueles que vivem no pecado tanto quanto Deus. Isso não significa que devemos sair por ai matando pessoas ou sendo ignorantes e mal educados com elas. Odiar no sentido divino é condenar suas ações, reprovar tudo o que eles fazem (pois só cometem pecados), lutar para diminuir suas influências na sociedade e etc. Devemos ser cordiais com toda e qualquer pessoa, mas jamais nos unir com aqueles que praticam coisas que vão contra os princípios bíblicos.

Talvez alguém pense: Mas como isso pode significar odiar? Acontece que estamos falando de odiar no sentido bíblico e não meramente humano. A Bíblia nos encoraja a odiar os ímpios:

“Odeiem o mal, vocês que amam o SENHOR, pois ele protege a vida dos seus fiéis e os livra das mãos dos ímpios”.  (Salmo 97.10).

“Odeio aqueles que se apegam a ídolos inúteis; eu, porém, confio no SENHOR”. (Salmo 31.6).

“O vidente Jeú, filho de Hanani, saiu ao seu encontro e lhe disse: Será que você devia ajudar os ímpios e amar aqueles que odeiam o SENHOR?”. (2º Crônicas 19.2).


Alguns argumentam que devemos odiar apenas as atitudes erradas de certas pessoas. Mas isso é conflitante uma vez que uma pessoa é a soma de suas ações. Se eu odeio certas ações, também odeio quem as pratica. Se alguém chegar para mim dizendo que odeia o cristianismo isso me ofenderá bastante, porque eu vivo o cristianismo. Todo o meu ser está baseado nele. O mesmo ocorre com aqueles que vivem no pecado, a nossa indignação contra o pecado também é dirigida aos que o pratica.

Amar e odiar não são emoções dentro do contexto bíblico, mas volições que determinam e dirigem o pensamento para o alvo e objetivo correlatos. Devemos tratar os ímpios com cordialidade, mas ao mesmo tempo ser hostis a tudo quanto eles fazem, pois não visam glorificar a Deus e por consequência constitui-se pecado.
Pb. Samuel